Tempo de leitura: 13 minutos
A Associação Brasileira de
Direito Financeiro (ABDF) organizou um debate em São Paulo, que teve por objeto
o surpreendente rumo que tomou o julgamento do RHC 163.334 pelo Plenário do
STF, ao confirmar decisão que havia sido proferida pela 1ª Seção do STJ no
sentido de tornar crime o não pagamento de ICMS declarado.
Saiba mais sobre o assunto abaixo:
Em janeiro, participaram do evento
promovido pela ABDF o advogado que representou os contribuintes impetrantes do
habeas corpus (HC), o tributarista Igor Mauler Santiago, e o criminalista
Pierpaolo Bottini, que atuou no caso como representante dos amici curiae FIESP
e FECOMERCIO-SP.
Qualquer que seja o ambiente em que esse
debate se dê – e no acima mencionado não foi diferente – é marcante a
perplexidade de todos com a criação pelo Poder Judiciário de um novo crime
tributário, não previsto em qualquer dispositivo legal em vigor.
Exatamente por esse motivo, a decisão
proferida no referido RHC fere frontalmente os princípios constitucionais da
legalidade e da tipicidade, aplicáveis de forma específica e enfática a ambos
os ramos do Direito em exame, tanto o Penal quanto o Tributário.
De fato, entre todas as hipóteses
mencionados na Lei 8137/90, a única que guardaria algum grau de comparabilidade
com os fatos examinados no julgamento seria a referida no seu artigo 2, II,
pelo qual é crime contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo
legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na
qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres
públicos” (os grifos são nossos).
Vê-se que o tipo penal acima descrito se
refere a dois elementos cuja presença – de um ou de outro – é absolutamente
necessária à configuração da prática do crime: a existência de tributo (i)
“descontado” ou (ii) “cobrado” pelo sujeito passivo resultante de obrigação
tributária nascida nas mãos de terceiros que com ele transacionem.
O primeiro caso se dá, por exemplo, no
Imposto sobre a Renda descontado na fonte (IRF), e o segundo, no ICMS devido
por substituição tributária (ICMS-ST). Essas são situações em que o valor do
tributo é, em si, “descontado” ou “cobrado” daquele com quem o Fisco mantém
relação jurídico-tributária direta, ou seja, o real contribuinte do imposto.
Nessas hipóteses, apesar de não manter
relação de sujeição passiva direta com o Fisco, o agente retém ou cobra o
tributo do seu real contribuinte. Se recebido o valor e não realizado o seu
repasse aos cofres públicos, aí sim, restará configurada a prática da
“apropriação indébita tributária”, prevista no artigo 2, inciso II, da Lei
8137/90.
Na forma em que se dá a incidência do
ICMS próprio – situação objeto de julgamento no RHC 163.334 –, o contribuinte
não desconta nem cobra do consumidor final qualquer imposto que seja por este
último devido.
A relação jurídico-tributária se
estabelece diretamente entre o vendedor da mercadoria, contribuinte do imposto,
e o Fisco. O único valor que o vendedor cobra do consumidor final tem a
natureza de preço, e não de tributo.
O imposto é inserido nesse preço como
custo e é destacado na nota fiscal para fins de mero controle, por força de
expressa determinação da legislação aplicável nesse sentido (art.13, §1º, I, da
LC 87/96).
Não há, portanto, no ICMS próprio, como
indica a própria nomenclatura utilizada, tributo devido pelo consumidor final
que seja, no ato da venda, dele retido ou cobrado pelo vendedor da mercadoria.
O ICMS incidente na operação é valor que
resulta de obrigação ex lege configurada e estabelecida exclusivamente entre o
vendedor da mercadoria (varejista) e o Estado. Como qualquer outro custo, o
ICMS próprio deve ser considerado na formação do preço e nele inserido, para
que seja economicamente repercutido ao consumidor final.
Mutatis mutandis, é o que ocorre com os
valores devidos aos fornecedores das mercadorias vendidas. Embora o custo a
eles relativo tenha sido considerado na composição do preço – e, portanto,
repercutido ao consumidor final –, não há que se falar em qualquer relação
jurídico-obrigacional entre esse consumidor e os fornecedores do varejista.
Se esses fornecedores não receberem o
que lhes for devido, estaremos diante de mera inadimplência do varejista, e
jamais de apropriação indébita de valores que lhe tenham sido entregues pelo
consumidor final para mero repasse aos referidos fornecedores.
Isso porque, no exemplo acima, a relação
jurídica se estabelece única e exclusivamente entre o varejista e os
fornecedores, e não entre estes e os consumidores finais. Da mesma forma, o
ICMS próprio. A relação jurídico-tributária se estabelece entre o Fisco e o
varejista, e não entre o Fisco e os consumidores finais.
A ausência de recolhimento do ICMS
próprio configura, portanto, mera inadimplência, e não a apropriação indébita
tributária prevista no dispositivo de lei acima comentado.
Pelos votos proferidos por alguns
ministros no julgamento do RHC, a impressão que se tem é a de que julgavam
hipótese diversa, que nada tinha a ver com os fatos relatados nos autos. De fato,
falavam em sonegação, quando o caso julgado tinha por objeto o mero não
pagamento de ICMS próprio DECLARADO – situações absolutamente incompatíveis
entre si.
Falavam em dolo e em fraude, sem que
tivesse sido demonstrado nos autos qualquer prática do contribuinte que
fundamentasse qualquer conclusão no sentido de que esses elementos estariam
presentes.
Com efeito, o fato de o ICMS ser próprio
e ter sido “declarado” demonstra, em si, a impossibilidade da configuração de
sonegação ou fraude por parte do contribuinte impetrante do referido HC. O mero
não pagamento do tributo não pode chegar a tanto.
Pelos votos proferidos por alguns outros
ministros, verificou-se que eles se fundamentaram no argumento de que o
precedente firmado pelo próprio STF, em sede de repercussão geral, relativo à
impossibilidade de o ICMS integrar a base de cálculo do PIS/Cofins – por ser
receita do Estado, e não do contribuinte – seria demonstração inequívoca da
existência de apropriação indébita tributária, nas hipóteses em que o respectivo
montante não fosse recolhido aos cofres públicos.
Com a devida vênia, esse argumento
também não procede. O precedente relativo à integração do ICMS na base de
cálculo do PIS/Cofins tratou do conceito de receita e fixou o entendimento de
que o valor correspondente ao ICMS recebido do consumidor final pelo
contribuinte não estaria nela inserido, para esses fins específicos.
Consequentemente, o valor do imposto estadual não poderia sofrer a incidência
daquelas contribuições.
Ora, o fato de o ICMS não ser
considerado receita própria do contribuinte para fins específicos do PIS/Cofins
não tem o condão de deslocar a sujeição passiva do ICMS incidente na venda da
mercadoria para o consumidor final que a adquire. Essa relação, como
demonstrado acima, se estabelece exclusivamente entre o Fisco e o varejista,
contribuinte do imposto. Esse varejista segue, portanto, sem “descontar” ou
“cobrar” impostos de terceiros.
Logo, não há a configuração do crime por
absoluta falta de adequação da hipótese ao tipo penal previsto no art. 2 da lei
8137/90, configurador da apropriação indébita tributária.
O que temos, portanto, é que, além de
não estar amparado em qualquer fundamentação jurídica consistente, porque
confunde mera inadimplência com sonegação fiscal e enxerga apropriação indébita
onde não existe, o entendimento alcançado no julgamento do RHC 163.334 acabará,
com a devida vênia, por incentivar contribuintes que declaram os seus impostos,
mas não os pagam – por não terem, por exemplo, caixa para fazê-lo – a simplesmente
deixar de declará-los e, aí sim, praticar crime de sonegação fiscal.
Esse entendimento acabará, também, por
afugentar investimentos no país, tanto atuais quanto futuros. Afinal, quem
investirá em uma nação que prende os seus contribuintes por mera inadimplência,
mesmo que não envolvidos em qualquer prática de sonegação?
No Brasil, a Constituição determina que
não há prisão por dívidas, e as tributárias não estão entre as exceções a essa
regra. Isso é também o que preceitua o artigo 7, inciso VI, da Convenção
Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), da qual o
Brasil é parte signatária.
Um outro aspecto dessa questão é a
incoerência desse precedente do STF com a jurisprudência dele próprio e do
Superior Tribunal de Justiça, sobre aspectos que também se referem ao mero não
pagamento de tributos (inadimplência).
Com efeito, a jurisprudência do próprio
STF é pacífica no sentido de expressamente vedar as denominadas sanções
políticas, pelas quais o Fisco se utiliza de instrumentos de coação para forçar
o contribuinte a pagar os tributos. São exemplo dessa jurisprudência os
enunciados das Súmulas 70, 323 e 547, que, respectivamente, proíbem as
autoridades fiscais de interditarem o estabelecimento do contribuinte em
débito, apreenderem as suas mercadorias, ou impedirem o exercício das suas
atividades profissionais, com o objetivo de coagi-los ao cumprimento das suas
obrigações tributárias.
Há, também, a jurisprudência pacífica do
STJ – Súmula 430 – no sentido de que o mero não pagamento de tributo não é
suficiente para fundamentar o redirecionamento da execução fiscal para os
administradores da empresa, que só pode existir se houver a prática de ato que
configure excesso de poderes a eles outorgados pelos estatutos sociais da
empresa, ou infração à lei, o que o STJ entendeu inexistir no caso de mero não
pagamento de tributo.
Ora, que sentido faz a existência de
todas essas vedações aos possíveis abusos que venham a ser praticados
contrariamente ao contribuinte, se, com esse novo posicionamento adotado pelo
STJ e pelo STF, é possível a própria prisão do contribuinte? Que maior
instrumento de coação poderia ser disponibilizado ao Fisco? Ou o contribuinte
paga o tributo que deve, ou é preso!
A mera inadimplência não pode ser
configuradora de crime em hipótese alguma, pelo menos enquanto vigente o atual
arcabouço jurídico constitucional brasileiro.
No mesmo sentido, o voto do ministro
Ricardo Lewandowski no julgamento do ARE 999.425 (DJe 16.03.2017), pelo
Tribunal Pleno do STF, em que se examinou a constitucionalidade da Lei 8137/90.
Transcreve-se, abaixo, o trecho pertinente:
“(…) as condutas tipificadas na Lei
8137/1990 não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos (…). Não se
trata de punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o
Fisco.”
Se há contribuintes que, apesar de
declararem os seus impostos, buscam de forma contumaz financiar-se por meio do
atraso no seu pagamento, que os fiscais, e não a polícia, corram atrás desses
inadimplentes e lhes apliquem as medidas coercitivas e as exorbitantes
penalidades tributárias já previstas na legislação – por sinal, entre as
maiores do mundo.
Prender meros inadimplentes é injurídico
e insensato!
Mas é com essa nova regra e situação que
os contribuintes brasileiros terão que conviver daqui por diante. Note-se,
ainda, que, por não se tratar o RHC de uma ação de controle concentrado, a
decisão em exame não tem efeito erga omnes nem, muito menos, efeitos
vinculantes para as instâncias inferiores, que não estão obrigadas, em tese, a
seguir essa orientação do STF.
Como bem lembraram Igor e Pierpaolo, no
debate referido no início deste artigo, essa ausência de natureza vinculante do
precedente é, por um lado, boa porque permite que essas instâncias inferiores
mantenham o entendimento que sempre preponderou na jurisprudência brasileira –
o de que a mera inadimplência não é crime –, mas, por outro lado, é preocupante
porque aquelas instâncias poderão criminalizar a conduta de mera inadimplência
sem se ater aos parâmetros limitadores definidos pelo STF: necessidade da
existência de contumácia e dolo.
Daí a importância dos embargos de
declaração que, segundo nos relataram os mencionados debatedores, serão opostos
nos autos do RHC para, entre outros pedidos, solicitar que sejam estabelecidas,
de forma clara e precisa, os reais contornos daqueles dois conceitos. Somente
isso propiciará que o contribuinte tenha exata noção das circunstâncias que
terão que estar presentes para que ele possa vir a ser considerado praticante
de inadimplência contumaz, com dolo específico de lesar os cofres públicos.
A imprensa noticia que é absoluta a
falta de uniformidade entre as legislações estaduais no que se refere à
definição de contumácia, o que gerará distorções concorrenciais e agravamento
ainda maior da insegurança jurídica propiciada pela decisão proferida no
julgamento desse RHC.
Note-se, ainda, que por se tratar de
nova hipótese delituosa, não prevista em lei, deverá também ser esclarecido se,
somente a partir do julgamento dos embargos acima referidos, poderá a
inadimplência dolosa e contumaz vir a ser considerada crime. Afinal, é isso o
que determina o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal, pelo
qual só se considera criminosa a prática de ato após a criação de norma que a defina
como tal.
No caso, essa garantia constitucional só
poderá ser considerada observada após o julgamento dos citados embargos de
declaração, quando, espera-se, serão dados os contornos necessários a que o
contribuinte saiba com clareza o que não deve fazer.
Até então, reinará a insegurança
jurídica.
GUSTAVO BRIGAGÃO – Presidente da ABDF –
Associação Brasileira de Direito Financeiro.